Uruguaia relembra 6 meses de trabalho análogo à escravidão em MG e AVC provocado por estresse: 'acharam que eu estava fingindo', diz
02/05/2025
(Foto: Reprodução) Luciana Gonzalhes foi atraída para Planura, no Triângulo Mineiro, com a promessa de que poderia estudar em uma instituição de ensino dos três suspeitos. Ela conta que também presenciou diversas agressões ao homem que foi forçado a tatuar as inicias dos patrões como 'símbolo de posse'. Luciana passou 6 meses em situação análoga à escravidão em Planura
Reprodução/Arquivo pessoal
Dias de muito estresse, pressão e violências que causaram um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Esse é um breve resumo do que a uruguaia Luciana Gonzalhes, de 29 anos, relatou ao g1 sobre os 6 meses em que foi mantida em situação análoga à escravidão em Planura, no Triângulo Mineiro.
Além das inúmeras situações violentas as quais foi submetida, Luciana lembra ainda que presenciou diversas humilhações e chantagens a um homem de 32 anos, forçado a tatuar as inicias dos agressores como símbolo de posse. Os nomes dos suspeitos de 57, 40 e 24 anos não foram divulgados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).
O terror vivenciado pela uruguaia foi tamanho, que hoje, segundo ela, tem metade do corpo paralisado em decorrência do AVC.
"Lembro que era uma sexta-feira quando me pediram para tirar todos os móveis da cozinha e limpar, porque iriam trocá-los. Como eu tinha medo que as violências se virassem contra mim, eu limpava tudo e foi nessa situação que eu tive o AVC. Quando me encontraram caída na cozinha acharam que era mentira e chegaram a furar toda a minha perna com uma agulha para terem certeza de que eu não estava sentindo nada".
🔔 Receba no WhatsApp as notícias do Triângulo e região
AVC por estresse
O estresse pelos abusos psicológicos que sofria e por presenciar as agressões ao homem causou um Acidente Vascular Cerebral (AVC) que paralisou a parte esquerda do corpo de Luciana. Segundo a mulher, o AVC ocorreu após o colega tentar tirar a própria vida e o diagnóstico da equipe médica apontou que ele foi provocado pelo estresse constante que ela vivia.
"Vivíamos em pressão constante, não tínhamos para quem pedir ajuda. Veja só, eles são homens poderosos, têm condições financeiras muito melhores. Além disso, eram muito bem vistos por políticos, policiais e diversas outras pessoas de Planura, quem acreditaria em nós?"
Luciana lembra que devido ao acidente vascular, os patrões a levaram até Uberaba e a abandonaram em um hospital da cidade. Conforme ela, os três a obrigaram a dizer que eram apenas amigos e que ela não tinha nenhum vínculo empregatício com eles.
"Depois eu não voltei a vê-los. Eles passaram a me mandar uma quantia em dinheiro para eu comer e pagar o aluguel, mas que não passava de R$ 600. Eu passei fome, não tinha amparo e estava em uma cidade que eu não conhecia nada. Eu tomei coragem e contei para alguns amigos tudo o que estava acontecendo e eles conseguiram me dar certa ajuda."
Ainda durante o processo de recuperação do AVC, o medo de Luciana fez a situação piorar. Orientada pela equipe médica a permanecer em Uberaba, ela contrariou o pedido e viajou de avião para se afastar de tudo o que havia passado.
"Eu ainda tenho parte do corpo paralisado, porque tive um segundo AVC em uma viagem que fiz as pressas de avião. O médico recomendou que continuasse em Uberaba, mas eu não podia, então aceitei o risco e fui embora. Esse segundo AVC foi provocado pela viagem de avião que eu não poderia ter feito devido ao meu estado de saúde".
Os três homens foram presos pela Polícia Federal em flagrante por tráfico de pessoas para fim de exploração de trabalho em condição análoga a escravidão. Eles miravam pessoas LGBT+ em situação de vulnerabilidade socioeconômica e afetiva para estabelecer laços de confiança e, posteriormente, submetê-las às condições abusivas.
O sonho de poder estudar
Luciana quando chegou ao Brasil para trabalhar na casa dos três homens presos pela Polícia Federal
Reprodução/Arquivo pessoal
Luciana não hesita e diz que o sonho de estudar a motivou a vir para o Brasil trabalhar como doméstica na casa dos homens.
Em uma foto tirada no dia 17 de junho de 2024 em frente ao aeroporto de Pelotas (RS), Luciana aparece feliz. No entanto, não imaginava o que estaria prestes a passar nos seis meses seguintes.
"Eu não conclui o ensino médio e tinha o sonho de terminar os estudos e ingressar em uma faculdade. Foi quando os conheci pelas redes sociais e começamos a trocar mensagens. Antes de me trazerem ao Brasil, nunca imaginei que passaria por algo do tipo, principalmente porque estavam envolvidos com crianças na instituição de ensino deles. Fui enganada por querer ter a chance de estudar".
De acordo com a uruguaia, os três homens eram bastante simpáticos nas trocas de mensagens e fizeram promessas de que ela poderia cursar o supletivo, concluir os estudos e ingressar na instituição de ensino superior que eles também mantinham em Planura.
Ao chegar no aeroporto de Uberaba, Luciana lembra que não desconfiou de nada até entrar no carro dos suspeitos. Segundo ela, os três homens disseram que outra pessoa trabalhava para eles em casa, mas que sairia em breve.
"Antes de eu vir, eles me disseram que o rapaz já não estaria mais lá, porém a história mudou assim que eu pisei no Brasil. Eu notei que eles monitoravam a casa o tempo todo por câmeras. Mesmo assim, nada disso ainda havia me feito pensar que havia caído em uma enrascada. Nada disso havia me dado o impulso de talvez me lançar para fora do carro e fugir".
Sonho se torna pesadelo
Ao chegar na casa rodeada por grandes muros, Luciana se deparou com o homem de 32 anos ainda no local. Segundo a mulher, ele permanecia calado e era constantemente humilhado pelos patrões.
"Lembro que eram por volta de 4h da manhã que chegamos. Desde o início foram grosseiros com o rapaz e logo de cara isso também se virou para mim. Um deles se virou e disse: acho melhor você dormir logo porque queremos você de pé às 6h".
Mesmo com o horário de acordar definido, a uruguaia acordava muito antes devido aos berros dos patrões e o barulho das chicotadas pelas quais o colega passava.
"Ele era acordado a berros e chicotadas antes das 5h. Eles o agrediam por qualquer motivo com socos e facões. Trataram ele como se fosse um gado. Ele era miudinho, magrinho, faziam o que bem entendiam. O meu colega tem cortes por todo o corpo e logo essa situação me deixou oprimida, sem saída, afinal, a posição econômica deles era bem maior", afirmou.
Ainda de acordo com Luciana, o homem era totalmente excluído do convívio da casa. Ele comia em vasilhas de plástico colocadas fora da residência e não podia entrar na casa dos patrões, sendo submetido a trabalhos árduos até a exaustão.
Em uma das ocasiões, a uruguaia diz que o homem teve os dois braços quebrados pelos patrões e, como um deles trabalhava como contador, conseguiu fazer com que a vítima recebesse uma indenização de R$ 10 mil usada pelos criminosos para uma viagem ao Caribe.
"Ele sofreu até o ponto de tentar tirar a própria vida. Na ocasião eles o haviam deixado limpando sozinho as duas escolas das quais são donos. Aparentemente foi agredido durante o dia e só retornou tempos depois bastante ferido. Nesse dia, ele foi direto para os fundos e tentou tirar a própria vida. Só fomos descobrir quando os patrões berraram e ele não respondeu. Ao chegarmos, ele já estava sem respirar. Além disso, disseram que não o levariam para o hospital e que dariam um jeito ali mesmo. Foi graças a Deus que ele sobreviveu", relembrou Luciana.
Trabalhador forçado a tatuar iniciais dos patrões será indenizado em R$ 1 milhão
Indenização de R$ 1,3 milhão
Após ser resgatado, o homem mantido em situação análoga à escravidão pode ser indenizado em R$ 1,3 milhão. O valor foi solicitado pelo MPT em ação civil pública na Justiça Trabalhista divulgada na segunda-feira (28).
O MPT pediu que os acusados paguem R$ 300 mil referentes às verbas salariais e rescisórias, além da anotação do contrato de trabalho na carteira do trabalhador entre 2016 a 2025. A ação também pede que eles indenizem a vítima por danos morais em R$ 1 milhão e paguem indenização por danos morais coletivos de R$ 2 milhões.
"A grosso modo, a indenização por dano moral individual é uma reparação revertida diretamente à vitima, e a indenização por dano moral coletivo é revertida para a sociedade, sendo normalmente um recurso usado para a realização de obras e melhorias no local onde o crime ocorreu", explicou o Auditor Fiscal do Trabalho, Humberto Monteiro Camasmie.
Iniciais de patrões aliciadores foi tatuada na vítima para representar "posse", segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
MTE/Divulgação
Escravizado por 9 anos
Ao todo, o homem trabalhou 9 anos como empregado doméstico - sem registro em carteira e sob violência física, sexual e psicológica - enquanto Luciana permaneceu 6 meses.
Os suspeitos, um contador, um administrador e um professor, formam um trisal. Eles aliciaram as vítimas em redes sociais com promessas de trabalho em troca de moradia e alimentação, além da oportunidade de terminar o ensino médio e fazer cursos profissionalizantes na instituição de ensino que mantinham na cidade.
"Os suspeitos frequentavam páginas LGBT nas redes sociais e se aproximavam de homossexuais e transsexuais em situação de vulnerabilidade econômica e problemas familiares. O próprio resgatado contou que antes de vir do nordeste um outro empregado, que havia sido traficado, fugiu depois de um tempo", contou o Auditor Fiscal do Trabalho, Humberto Monteiro Camasmie.
No vídeo abaixo, os suspeitos aparecem mostrando o imóvel onde as vítimas ficariam.
Os três foram levados para a Penitenciária Professor Aluízio Ignácio de Oliveira, em Uberaba. Após a prisão dos suspeitos, as vítimas foram acolhidas pela Clínica de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pela Unipac, onde recebem assistência médica, psicológica e jurídica.
Trisal é preso por forçar homem fazer tatuagem das iniciais dos patrões em MG
LEIA TAMBÉM:
Trisal é preso por manter homem em trabalho análogo à escravidão por 9 anos e forçá-lo a tatuar iniciais dos patrões
Trabalhador resgatado foi forçado a tatuar iniciais dos patrões; FOTO
Homem forçado a tatuar iniciais dos patrões poderá ser indenizado em R$ 1 milhão
Trabalhador forçado a tatuar inicias dos patrões teve documentos retidos, rotina regrada e conversas com a família supervisionadas
Homem forçado a tatuar iniciais dos patrões era gravado em situações humilhantes e chantageado: 'ouvia as violências pelas quais passava', diz testemunha
📲 Siga o g1 Triângulo no Instagram, Facebook e X
VÍDEOS: veja tudo sobre o Triângulo, Alto Paranaíba e Noroeste de Minas